Adriana Prado
24.Set.10
O sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman é
um dos intelectuais mais respeitados e produtivos da atualidade. Aos 84 anos,
escreveu mais de 50 livros. Dois dos mais recentes, “Vida a crédito” e
“Capitalismo Parasitário” chegam ao Brasil pela Zahar. As quase duas dezenas de
títulos já publicados no País pela editora venderam mais de 200 mil cópias. Um
resultado e tanto para um teórico. Pode-se explicar o apelo de sua obra pela
relativa simplicidade com que esmiúça aspectos diversos da “modernidade
líquida”, seu conceito fundamental. É assim que ele se refere ao momento da
História em que vivemos. Os tempos são “líquidos” porque tudo muda tão
rapidamente. Nada é feito para durar, para ser “sólido”. Disso resultariam,
entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o
endividamento geral, a paranóia com segurança e até a instabilidade dos
relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E cada um por si. “Nossos
ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’, se referiam à
perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados:
‘progresso’, para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora
de um carro em aceleração”, afirma. Em entrevista à ISTOÉ, por e-mail, o
professor emérito das universidades de Leeds, no Reino Unido, e de Varsóvia, na
Polônia, falou também sobre temas que começou a estudar recentemente, mas são
muito caros aos brasileiros: tráfico de drogas, favelas e violência policial.
ISTOÉ - O que caracteriza a “modernidade líquida”?
ZYGMUNT BAUMAN - Líquidos mudam de forma muito rapidamente,
sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por
muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são
deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja,
o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de
mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o
tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma
maior expectativa de vida.
ISTOÉ - As pessoas estão conscientes dessa situação?
ZYGMUNT BAUMAN - Acredito que todos estamos cientes disso,
num grau ou outro. Pelo menos às vezes, quando uma catástrofe, natural ou
provocada pelo homem, torna impossível ignorar as falhas. Portanto, não é uma
questão de “abrir os olhos”. O verdadeiro problema é: quem é capaz de fazer o
que deve ser feito para evitar o desastre que já podemos prever? O problema não
é a nossa falta de conhecimento, mas a falta de um agente capaz de fazer o que
o conhecimento nos diz ser necessário fazer, e urgentemente. Por exemplo:
estamos todos conscientes das conseqüências apocalípticas do aquecimento do
planeta. E todos estamos conscientes de que os recursos planetários serão
incapazes de sustentar a nossa filosofia e prática de “crescimento econômico
infinito” e de crescimento infinito do consumo. Sabemos que esses recursos
estão rapidamente se aproximando de seu esgotamento. Estamos conscientes — mas
e daí? Há poucos (ou nenhum) sinais de que, de própria vontade, estamos
caminhando para mudar as formas de vida que estão na origem de todos esses
problemas.
ISTOÉ - A atual crise financeira tem potencial para mudar a
forma como vivemos?
ZYGMUNT BAUMAN - Pode ter ou não. Primeiramente, a crise
está longe de terminar. Ainda veremos suas conseqüências de longo prazo (um
grande desemprego, entre outras). Em segundo lugar, as reações à crise não
foram até agora animadoras. A resposta quase unânime dos governos foi de
recapitalizar os bancos, para voltar ao “normal”. Mas foi precisamente esse
“normal” o responsável pela atual crise. Essa reação significa armazenar
problemas para o futuro. Mas a crise pode nos obrigar a mudar a maneira como
vivemos. A recapitalização dos bancos e instituições de crédito resultou em
dívidas públicas altíssimas, que precisão ser pagas pelos nossos filhos e netos
— e isso pode empobrecer as próximas gerações. As dívidas exorbitantes podem
levar a uma considerável redistribuição da riqueza. São os países ricos agora
os mais endividados. De qualquer forma, não são as crises que mudam o mundo, e
sim nossa reação a elas.
ISTOÉ - Ao se conectarem ao mundo pela internet, as pessoas
estariam se desconectando da sua própria realidade?
ZYGMUNT BAUMAN - Os contatos online têm uma vantagem sobre
os offline: são mais fáceis e menos arriscados — o que muita gente acha
atraente. Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar. Casos as coisas
fiquem “quentes” demais para o conforto, você pode simplesmente desligar, sem
necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas, sem censuras ou
culpa. Atrás do seu laptop ou iPhone, com fones no ouvido, você pode se cortar
fora dos desconfortos do mundo offline. Mas não há almoços grátis, como diz um
provérbio inglês: se você ganha algo, perde alguma coisa. Entre as coisas
perdidas estão as habilidades necessárias para estabelecer relações de
confiança, as para o que der vier, na saúde ou na tristeza, com outras pessoas.
Relações cujos encantos você nunca conhecerá a menos que pratique. O problema é
que, quanto mais você busca fugir dos inconvenientes da vida offline, maior
será a tendência a se desconectar.
ISTOÉ - E o que o senhor chama de “amor líquido”?
ZYGMUNT BAUMAN - Amor líquido é um amor “até segundo aviso”,
o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te
trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais
satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de
ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta
substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como
seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o
amor não é um “objeto encontrado”, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil
esforço e de boa vontade.
ISTOÉ - Nesse contexto, ainda faz sentido sonhar com um
relacionamento estável e duradouro?
ZYGMUNT BAUMAN - Ambos os tipos de relacionamento têm suas
próprias vantagens e riscos. Em um mundo “líquido”, em rápida mutação, “compromissos
para a vida” podem se revelar como sendo promessas que não podem ser cumpridas
— deixando de serem algo valioso para virarem dificuldades. O legado do
passado, afinal, é a restrição mais grave que a vida pode impor à liberdade de
escolha. Mas, por outro lado, como se pode lutar contra as adversidades do
destino sozinho, sem a ajuda de amigos fiéis e dedicados, sem um companheiro de
vida, pronto para compartilhar os altos e baixo? Nenhuma das duas variedades de
relação é infalível. Mas a vida também não o é. Além disso, o valor de um
relacionamento é medido não só pelo que ele oferece a você, mas também pelo que
oferece aos seus parceiros. O melhor relacionamento imaginável é aquele em que
ambos os parceiros praticam essa verdade.
ISTOÉ - O que explicaria o crescimento do consumo de
antidepressivos?
ZYGMUNT BAUMAN - Você colocou o dedo em um dos muitos
sintomas da nossa crescente intolerância ao sofrimento – na verdade, uma
intolerância a cada desconforto ou mesmo ligeira inconveniência. Em uma vida
regulada por mercados consumidores, as pessoas passaram a acreditar que, para
cada problema, há uma solução. E que esta solução pode ser comprada na loja.
Que a tarefa do doente não é tanto usar sua habilidade para superar a
dificuldade, mas para encontrar a loja certa que venda o produto certo que irá
superar a dificuldade em seu lugar. Não foi provado que essa nova atitude
diminui nossas dores. Mas foi provado, além de qualquer dúvida razoável, que a
nossa induzida intolerância à dor é uma fonte inesgotável de lucros comerciais.
Por essa razão, podemos esperar que essa nossa intolerância se agrave ainda
mais, em vez de ser atenuada.
ISTOÉ - E a obsessão pelo corpo perfeito?
ZYGMUNT BAUMAN - Não é o ideal de perfeição que lubrifica as
engrenagens da indústria de cosméticos, mas o desejo de melhorar. E isso
significa seguir a moda atual. Todos os aspectos da aparência corporal são,
atualmente, objetos da moda, não apenas o cabelo ou a cor dos lábios, mas os
tamanhos dos quadris ou dos seios. A “perfeição” significaria um fim a outras
“melhorias”. Na cirurgia plástica, são oferecidos aos clientes cartões de
“fidelidade”, garantindo um desconto nas sucessivas cirurgias que eles certamente
irão realizar. Assim como a indústria de celebridades, a indústria cosmética
não tem limites e a demanda por seus serviços pode, a princípio, se expandir
infinitamente.
ISTOÉ - O que está por trás desse culto às celebridades?
ZYGMUNT BAUMAN - Não é só uma questão de candidatos a
celebridades e seu desejo por notoriedade. O que também é uma questão é que o
“grande público” precisa de celebridades, de pessoas que estejam no centro das
atenções. Pessoas que, na ausência de autoridades confiáveis, líderes, guias,
professores, se oferecem como exemplos. Diante do enfraquecimento das
comunidades, essas pessoas fornecem “assuntos-chave” em torno dos quais as
quase-comunidades, mesmo que apenas por um breve momento, se condensam —para
desmoronar logo depois e se recondensar em torno de outras celebridades
momentâneas. É por isso que a indústria de celebridades está garantida contra
todas as depressões econômicas.
ISTOÉ - Como fica o futuro nesse contexto de constantes
mudanças?
ZYGMUNT BAUMAN - Nossos ancestrais eram esperançosos: quando
falavam de "progresso", se referiam à perspectiva de cada dia ser
melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: “progresso”, para nós,
significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração.
De não descer ou embarcar a tempo. De não estar atualizado com a nova moda. De
não abandonar rapidamente o suficiente habilidades e hábitos ultrapassados e de
falhar ao desenvolver as novas habilidades e hábitos que os substituem. Além
disso, ocupamos um mundo pautado pelo “agora”, que promete satisfações
imediatas e ridiculariza todos os atrasos e esforços a longo prazo. Em um mundo
composto de “agoras”, de momentos e episódios breves, não há espaço para a
preocupação com “futuro”. Como diz um outro provérbio inglês: “Vamos cruzar
essa ponte quando chegarmos a ela”. Mas quem pode dizer quando (e se) chegar e
em que ponte?
ISTOÉ - Há cinco anos, a polícia de Londres matou o
brasileiro Jean Charles de Menezes, alegando tê-lo confundido com um
terrorista. Por que o mundo está tão paranóico com segurança?
ZYGMUNT BAUMAN - Essa obsessão e a nossa gestão dos assuntos
globais, responsável por reforçá-la, constituem a ameaça mais terrível à nossa
segurança. O fantástico crescimento das “indústrias de segurança”, juntamente
com a crescente suspeita de perigo que ela evoca, são motivos para antever uma
piora das coisas. Se não por qualquer outro motivo, então porque, na lógica das
armas de fogo, uma vez carregadas, em algum elas deverão ser descarregadas.
ISTOÉ - No Brasil, a violência é uma questão especialmente
preocupante. Como o sr. enxerga isso?
ZYGMUNT BAUMAN - Para começar, as favelas servem como uma
lixeira para um número enorme de pessoas tornadas desnecessárias em partes do
País onde suas fontes tradicionais de sustento foram destruídas — para quem o
Estado não tinha nada a oferecer nem um plano de futuro. Mesmo que não
declararem isso abertamente, as agências estatais devem estar felizes pelo fato
de o povo nas favelas tomar os problemas em suas próprias mãos. Por exemplo, ao
construir seus barracos rapidamente e de qualquer forma, usando materiais
instáveis, encontrados ou roubados, na ausência de habitações planejadas e
construídas pelas autoridades estaduais ou municipais para acomodá-los.
ISTOÉ - Essa ausência do Estado abriu espaço para os
traficantes. O combate às quadrilhas às vezes é usado com justificativa para
excessos da polícia. Por que tanta violência?
ZYGMUNT BAUMAN - As relações entre a polícia e as empresas
de tráfico de drogas são, na apropriada expressão de Bernardo Sorj (sociólogo
brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio), “nem de guerra nem de
paz”. Esse amor e ódio entre as duas principais agências de terror aumenta o
estigma da favela como o local da violência genocida. Ao mesmo tempo, porém,
também contribui para a “funcionalidade” das favelas na manutenção do atual
sistema de poder no Brasil. A polícia brasileira tem um longo histórico de
tratamento brutal aos pobres, anterior à proliferação relativamente recente das
favelas. A brutalidade da polícia é mesmo para ser espetacular. Como não é
particularmente bem sucedida no combate à criminalidade e à corrupção, a
polícia, para convencer a população de seu potencial coercitivo, deve
assustá-la e coagi-la a ser passivamente obediente.
ISTOÉ - O sr. vê uma solução?
ZYGMUNT BAUMAN - Algo está sendo feito, mesmo que, até
agora, não seja suficiente para cortar um nó firmemente amarrado por décadas,
senão séculos. Um exemplo é o Viva Rio (ONG que atua contra a violência).
Pequenos passos, talvez, sopros não fortes o suficiente para romper a armadura
do ressentimento mútuo e indiferença moral de anos entre “morro” e “asfalto” no
Rio. Mas a escolha é, afinal, entre erguer paredes de pedra e aço ou o
desmantelamento de cercas espirituais.
ISTOÉ - O que o sr. diria ao jovens?
ZYGMUNT BAUMAN - Eu desejo que os jovens percebam
razoavelmente cedo que há tanto significado na vida quando eles conseguem
adicionar isso a ela através de esforço e dedicação. Que a árdua tarefa de
compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida
é maior que a soma de seus momentos.
Disponível em
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755_VIVEMOS+TEMPOS+LIQUIDOS.
Acesso em 30 jan 2014.