Camilo Vannuchi
edição 1879 - 19.Out.05
Observador contumaz das manias humanas, Roberto Shinyashiki
está cansado dos jogos de aparência que tomaram conta das corporações e das
famílias. Nas entrevistas de emprego, por exemplo, os candidatos repetem o que
imaginam que deve ser dito. Num teatro constante, são todos felizes, motivados,
corretos, embora muitas vezes pequem na competência. Dizem-se perfeccionistas:
ninguém comete falhas, ninguém erra. Como Álvaro de Campos (heterônimo de
Fernando Pessoa) em Poema em linha reta, o psiquiatra não compartilha da
síndrome de super-heróis. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada na vida
(...) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo,
nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe”, dizem os versos que o
inspiraram a escrever Heróis de verdade (Editora Gente, 168 págs., R$ 25).
Farto de semideuses, Roberto Shinyashiki faz soar seu alerta por uma mudança de
atitude. “O mundo precisa de pessoas mais simples e verdadeiras.”
ISTOÉ - Quem são os heróis de verdade?
ROBERTO SHINYASHIKI - Nossa sociedade ensina que, para ser
uma pessoa de sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro
importado, viajar de primeira classe. O mundo define que poucas pessoas
deram certo. Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de
funcionários que não chegaram a ser gerentes. E essas pessoas são tratadas como
uma multidão de fracassados. Quando olha para a própria vida, a maioria se
convence de que não valeu a pena porque não conseguiu ter o carro nem a casa
maravilhosa. Para mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha
casa possa se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples e
transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar seus
projetos de vida, e não para impressionar os outros. São pessoas que sabem
pedir desculpas e admitir que erraram.
ISTOÉ - O sr. citaria exemplos?
ROBERTO SHINYASHIKI - Dona Zilda Arns, que não vai a
determinados programas de tevê nem aparece de Cartier, mas está salvando
milhões de pessoas. Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu
pai, órfão aos sete anos, empregado em uma farmácia. Morávamos em um bairro
miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são meus heróis.
Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem. Acho lindo quando o
Cafu põe uma camisa em que está escrito “100% Jardim Irene”. É pena que a maior
parte das pessoas esconda suas raízes. O resultado é um mundo vítima da
depressão, doença que acomete hoje 10% da população americana. Em países como
Japão, Suécia e Noruega, há mais suicídio do que homicídio. Por que tanta gente
se mata? Parte da culpa está na depressão das aparências, que acomete a mulher
que, embora não ame mais o marido, mantém o casamento, ou o homem que passa
décadas em um emprego que não o faz se sentir realizado, mas o faz se sentir
seguro.
ISTOÉ - Qual o resultado disso?
ROBERTO SHINYASHIKI - Paranóia e depressão cada vez mais
precoces. O pai quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de
inglês, informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão aparece. A
única coisa que prepara uma criança para o futuro é ela poder ser criança. Com
a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão roubando a
infância dos filhos. Essas crianças serão adultos inseguros e terão discursos
hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo corporativo.
ISTOÉ - Por quê?
ROBERTO SHINYASHIKI - O mundo corporativo virou um mundo de
faz-de-conta, a começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito
com mais marketing pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima do que
a competência. Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que
respondia todas as minhas perguntas com uma ou duas palavras. Disse que ela não
parecia demonstrar interesse. Ela me respondeu estar muito interessada, mas,
como falava pouco, pediu que eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa.
Até porque ela era candidata a um emprego na contabilidade, e não de relações
públicas. Contratei na hora. Num processo clássico de seleção, ela não passaria
da primeira etapa.
ISTOÉ - Há um script estabelecido?
ROBERTO SHINYASHIKI - Sim. Quer ver uma pergunta estúpida
feita por um presidente de multinacional no programa O aprendiz? “Qual é seu
defeito?” Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal: “Eu
mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar.” É exatamente
o que o chefe quer escutar. Por que você acha que nunca alguém respondeu
ser desorganizado ou esquecido? É contratado quem é bom em conversar, em
fingir. Da mesma forma, na maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem
o jogo do poder. O vice-presidente de uma das maiores empresas do planeta me
disse: “Sabe, Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir.” Isso
significa que quem fala a verdade não chega a diretor?
ISTOÉ - Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal
preparadas?
ROBERTO SHINYASHIKI - Ele cria pessoas arrogantes, que não
têm a humildade de se preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o
fim e não se preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de
motivação, mas o maior problema no Brasil é competência. Cuidado com os burros
motivados. Há muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta você assumir
uma função para a qual não está preparado. Fui cirurgião e me orgulho de nunca
um paciente ter morrido na minha mão. Mas tenho a humildade de reconhecer que
isso nunca aconteceu graças a meus chefes, que foram sábios em não me dar um
caso para o qual eu não estava preparado. Hoje, o garoto sai da faculdade
achando que sabe fazer uma neurocirurgia. O Brasil se tornou incompetente e não
acordou para isso.
ISTOÉ - Está sobrando auto-estima?
ROBERTO SHINYASHIKI - Falta às pessoas a verdadeira
auto-estima. Se eu preciso que os outros digam que sou o melhor, minha
auto-estima está baixa. Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara
mal-educado dava uma gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom. Hoje,
como as pessoas não conseguem nem ser nem ter, o objetivo de vida se tornou
parecer. As pessoas parece que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E
poucos são humildes para confessar que não sabem. Há muitas mulheres solitárias
no Brasil que preferem dizer que é melhor assim. Embora a auto-estima esteja
baixa, fazem pose de que está tudo bem.
ISTOÉ - Por que nos deixamos levar por essa necessidade de
sermos perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?
ROBERTO SHINYASHIKI - Isso vem do vazio que sentimos. A
gente continua valorizando os heróis. Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem
vai salvar o time? O técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta. O
problema é que eles não vão salvar nada! Tive um professor de filosofia que
dizia: “Quando você quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha
Elizabeth com uma crise de diarréia durante um jantar no Palácio de
Buckingham.” Pode parecer incrível, mas a rainha Elizabeth também tem diarréia.
Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de tristeza, já fez coisas que
não deram certo. A gente tem de parar de procurar super-heróis. Porque se o
super-herói não segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.
ISTOÉ - O conceito muda quando a expectativa não se
comprova?
ROBERTO SHINYASHIKI - Exatamente. A gente não é super-herói
nem superfracassado. A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de
tristeza. Não há nada de errado nisso. Hoje, as pessoas estão questionando o
Lula em parte porque acreditavam que ele fosse mudar suas vidas e se
decepcionaram. A crise será positiva se elas entenderem que a responsabilidade
pela própria vida é delas.
ISTOÉ - É comum colocar a culpa nos outros?
ROBERTO SHINYASHIKI - Sim. Há uma tendência a reclamar, dar
desculpas e acusar alguém. Eu vejo as pessoas escondendo suas humanidades.
Todas as empresas definem uma meta de crescimento no começo do ano. O
presidente estabelece que a meta é crescer 15%, mas, se perguntar a ele em que
está baseada essa expectativa, ele não vai saber responder. Ele estabelece um
valor aleatoriamente, os diretores fingem que é factível e os vendedores já
partem do princípio de que a meta não será cumprida e passam a buscar explicações
para, no final do ano, justificar. A maioria das metas estabelecidas no Brasil
não leva em conta a evolução do setor. É uma chutação total.
ISTOÉ - Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto
Shinyashiki dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem
defeitos?
ROBERTO SHINYASHIKI - Tenho minhas angústias e inseguranças.
Mas aceitá-las faz minha vida fluir facilmente. Há várias coisas que eu queria
e não consegui. Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu
filho mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos. Com uma
criança especial, eu aprendi que ou eu a amo do jeito que ela é ou vou
massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que fosse. Quando
olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo. O resto foram
apostas e erros. Dia desses apostei na edição de um livro que não deu certo. Um
amigão me perguntou: “Quem decidiu publicar esse livro?” Eu respondi que tinha
sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.
ISTOÉ - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da
aparência?
ROBERTO SHINYASHIKI - O primeiro passo é pensar nas coisas
que fazem as pessoas cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três
fraquezas. A primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir
amada e a terceira é buscar segurança. Os Beatles foram recusados por
gravadoras e nem por isso desistiram. Hoje, o erro das escolas de música é
definir o estilo do aluno. Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King
ou o Keith Richards. Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem
covers do Bill Gates. O que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a
desenvolver suas próprias potencialidades.
ISTOÉ - Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
ROBERTO SHINYASHIKI - A sociedade quer definir o que é
certo. São quatro loucuras da sociedade. A primeira é instituir que todos têm
de ter sucesso, como se ele não tivesse significados individuais. A segunda
loucura é: “Você tem de estar feliz todos os dias.” A terceira é: “Você tem que
comprar tudo o que puder.” O resultado é esse consumismo absurdo. Por fim, a
quarta loucura: “Você tem de fazer as coisas do jeito certo.” Jeito certo não
existe. Não há um caminho único para se fazer as coisas. As metas são
interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade. Felicidade não é uma
meta, mas um estado de espírito. Tem gente que diz que não será feliz enquanto
não casar, enquanto outros se dizem infelizes justamente por causa do
casamento. Você precisa ser feliz tomando sorvete, levando os filhos para
brincar.
ISTOÉ - O sr. visita mestres na Índia com freqüência. Há
alguma parábola que o sr. aprendeu com eles que o ajude a agir?
ROBERTO SHINYASHIKI - Quando era recém-formado em São Paulo,
trabalhei em um hospital de pacientes terminais. Todos os dias morriam nove ou
dez pacientes. Eu sempre procurei conversar com eles na hora da morte. A maior
parte pega o médico pela camisa e diz: “Doutor, não me deixe morrer. Eu me
sacrifiquei a vida inteira, agora eu quero ser feliz.” Eu sentia uma dor enorme
por não poder fazer nada. Ali eu aprendi que a felicidade é feita de coisas
pequenas. Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o
dinheiro em imóveis. Uma história que aprendi na Índia me ensinou muito. O
sujeito fugia de um urso e caiu em um barranco. Conseguiu se pendurar em
algumas raízes. O urso tentava pegá-lo. Embaixo, onças pulavam para agarrar seu
pé. No maior sufoco, o sujeito olha para o lado e vê um arbusto com um morango.
Ele pega o morango, admira sua beleza e o saboreia. Cada vez mais nós temos
ursos e onças à nossa volta. Mas é preciso comer os morangos.
Disponível em
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/12528_CUIDADO+COM+OS+BURROS+MOTIVADOS.
Acesso em 02 jan 2014.