Jamil Chade
08 de dezembro de 2013
Quando dois times entram em campo hoje na Europa,
não são apenas os torcedores que esperam de seus ídolos uma vitória.
Investidores, fundos de pensão, empresas e acionistas também torcem para que os
craques nos quais eles têm dinheiro depositado sejam decisivos em campo. Um
levantamento feito pela KPMG revelou que mais de 1,1 mil jogadores na Europa
são propriedade de grupos financeiros, e não de clubes.
Juntos, esses investidores poderiam formar cerca de 50 times
de futebol, com titulares e reservas. No total, mais de US$ 1,2 bilhão está
investido nesses jogadores. O Estado consultou investidores, dirigentes de
clubes e cartolas e a constatação é de que a nova fronteira não é mais comprar
um time ou um estádio, mas ser acionista na prática de um jogador, como se ele
fosse uma commodity.
O fenômeno não é novo no Brasil e jogadores como Neymar
garantiram salários elevados graças à participação de vários sócios. Mas a noção
de que a prática era disseminada na Europa era pouco conhecida.
Parte da iniciativa vem dos próprios clubes que, com a
recessão europeia, saíram ao mercado oferecendo parcelas de seus jogadores a
investidores para ajudar a pagar os altos salários dos craques e também para
levantar capital. "Para muitos clubes, isso evitou que seus presidentes
tivessem de se ajoelhar diante de um banqueiro e pedir mais um empréstimo,
pagar juros altos e se endividar", contou o cartola de um clube espanhol,
que pediu anonimato.
Num documento de apresentação de um desses fundos, o Doyen
Sports Investments, a crise na Europa é o argumento usado para apontar para os
benefícios do novo modelo. "Com a crise financeira internacional, clubes
continuam a ter sérios desafios de liquidez e escassez de financiamento tanto
para infraestrutura como para aquisição de novos jogadores."
Em apenas três anos, o Doyen Sports Investments aplicou mais
de 80 milhões na aquisição de jogadores. Apenas em 2011, a empresa esteve
envolvida na transferência de seis jogadores para o Sevilla. Caso o clube
espanhol vendesse dois dos jogadores negociados, Stevanovic e Kondogbia, o
fundo, com sede em Malta, ficaria com 50% do valor da nova transferência.
Um dos ativos da empresa é Eliaquim Mangala, do Porto.
"Fomos transformados em um produto financeiro", declarou. "O clube
é a fábrica e nós somos um produto. Temos de ser realistas", disse. Em
2011, o Doyen tinha 33,33% dos direitos econômicos de Mangala, que por sua vez
não sabia que outros 10% de seus direitos haviam sido comprados pela empresa
Robi Plus.
Bom para os dois lados. Como Mangala, dezenas de outros
jogadores em Portugal vivem a mesma situação. Segundo a KPMG, um em cada três
atletas da primeira divisão está sendo financiado por um investidor. Para o
clube, o sistema permite contar com alguns dos principais jogadores da
temporada sem ter de gastar o que o caixa já não tem. Para o jogador, o sistema
abre as portas para salários mais altos. Mas quando jogadores como Luciano
Teixeira e João Mário Fernandes deixaram o Benfica neste ano, o valor da compra
não foi para o time de Lisboa, e sim para a Robi Plus, a empresa dona dos
passes dos atletas.
A prática é disseminada. Vai desde brasileiros como
Hernanes, da Lazio, ao colombiano Falcão Garcia, que começou a brilhar no
Porto, ganhou notoriedade no Atlético Madrid e hoje vale ouro para investidores
no AS Monaco. No Leste Europeu, o modelo domina metade de todos os jogadores
nas dez principais ligas da região. Na Holanda, 3% do valor de mercado dos
jogadores está nas mãos de fundos. Na Espanha, a taxa é de cerca de 8%.
Para o presidente da Liga Espanhola de Futebol, Javier
Tebas, esse é o caminho para que os clubes permaneçam competitivos,
principalmente os menores. Segundo o cartola, um clube como o Atlético Madrid
paga a cada ano cerca de 17 milhões em juros aos bancos por empréstimos que
tomou no passado para comprar jogadores. Esse valor quase seria suficiente para
pagar um ano de salário de Cristiano Ronaldo.
Polêmica. Mas o desembarque de grupos financeiros no futebol
não agradou a todos. A Uefa quer banir a prática, alegando que a tendência
ameaça a integridade do esporte e pode acabar levando jogadores a serem
vendidos, mesmo que em termos esportivos a transação não faça sentido. Na
França, o sistema é proibido. Na Inglaterra, a transferência de Carlos Tevez do
Corinthians para o West Ham, em 2006, fez os cartolas britânicos aprovarem uma
lei impedindo a participação de investidores no passe de um jogador. Na
transação, o clube escondeu da federação o fato de que jamais pagou ao time
paulista pelo atleta, mas sim à MSI, um fundo de investidores.
Outro problema, segundo a Uefa, é o risco de que equipes com
jogadores que pertencem ao mesmo dono se enfrentem e que os "ativos"
sejam instruídos a fabricar um resultado que interesse aos investidores, não
aos torcedores. "Esse sistema levanta sérias questões morais e
éticas", declarou Gianni Infantino, secretário-geral da Uefa.
FIFPro, o sindicato mundial de jogadores, também denuncia o
sistema. "Os fundos estão interessados em lucro, que só ocorre nas
transferências. Isso pode resultar num verdadeiro tráfico", alerta o
grupo. Outro temor, é de que os fundos forcem os clubes a escalar os jogadores
de sua propriedade para que entrem em campo, mesmo que não estejam atuando bem
ou possam estar ainda se recuperando de uma lesão. "Tais práticas são
inaceitáveis", declarou Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa. "É a
versão moderna da escravidão."
Disponível em
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,craque-agora-e-investimento-financeiro-,1105772,0.htm.
Acesso em 09 dez 2013.