Agência USP
13 de novembro de 2013
Uma pesquisa feita pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisa modalidades do consumo cultural entre
empregadas domésticas, o contexto socioeconômico nos quais elas se movem e a
possível atitude reflexiva provocada por esses produtos culturais. Com base em
pesquisa etnográfica realizada em São Paulo, a antropóloga Renata Mourão Macedo
sugeriu a existência de três perfis de consumidoras culturais: “românticas”,
“descoladas” e “evangélicas”, salientando a importância do rádio e da televisão
no universo estudado. O estudo constatou também mudanças em relação ao status
envolvido no consumo de bens culturais em decorrência de transformações sociais
recentes.
Ao acompanhar com tais trabalhadoras os capítulos da novela
“Cheias de Charme”, exibida em 2012 pela Rede Globo e protagonizada por três
empregadas domésticas, Renata observou que elas tinham uma visão relativamente
crítica dos papéis e dos enredos que as representavam. Segundo a antropóloga,
se na década de 1970, as empregadas domésticas foram associadas ao consumo de
músicas “bregas”, tanto que o cantor romântico Odair José ficou conhecido como
“cantor de empregadas”, a pesquisa revelou alguns matizes em relação às
preferências culturais dessas trabalhadoras.
De acordo com Renata, apesar das polêmicas diante das
definições de classes trabalhadoras ou médias, é possível perceber um conjunto
de mudanças sociais derivadas da aquisição de maiores rendimentos e do aumento
do poder de consumo entre as camadas de menor poder aquisitivo no Brasil. “Em
relação ao consumo cultural, também é possível perceber algumas diferenças, já
que com o aumento da escolaridade as pessoas têm menos medo de usufruir de
produtos culturais que antes lhe pareciam inacessíveis”, ressalta.
A pesquisadora afirma que também é possível verificar o
maior acesso a certas práticas, como viagens e cinema, ainda que muitas das
mulheres pesquisadas nunca tivessem ido ao cinema, por exemplo. “Na prática, as
diferenças culturais internas ao grupo pesquisado ainda são pequenas, já que
mesmo as trabalhadoras com ensino médio completo apresentam um grande
distanciamento em relação a qualquer produto da cultura dominante, como
literatura, cinema de autor, músicos mais ‘sofisticados’, etc”, destaca.
Perfis
Entre os perfis sugeridos pela pesquisa, as “românticas”
seriam aquelas mulheres que têm preferência pelos bens culturais associados ao
âmbito feminino e popular. “Ouvir músicas românticas, assistir a telenovelas
açucaradas ou acompanhar no rádio programas de cartas são preferências comuns”,
descreve Renata. “Assim, ser fã do cantor Amado Batista e do radialista Eli
Correa [do programa “A Hora da Saudade”, na rádio Capital AM, em São Paulo]
seriam emblemáticos desse perfil”.
As “descoladas” foram identificadas como aquelas
trabalhadoras que, assim como a maioria das pessoas de classes médias e altas,
não querem se associar aos bens característicos do perfil das “românticas”.
“Ainda que o gosto por telenovelas e programas de auditório seja comum aos dois
perfis, essas trabalhadoras agregam às suas preferências seriados
norte-americanos ou músicas do cenário pop internacional, por exemplo”, conta a
pesquisadora.
O terceiro perfil, chamado de “evangélicas”, seria formado
por trabalhadoras muito dedicadas à vida religiosa. “Participaram da pesquisa
algumas trabalhadoras ligadas às religiões pentecostais (como Assembleia de
Deus) que não assistiam ou ouviam qualquer programa profano, nem no rádio nem
na televisão”, aponta a antropóloga. “Ao contrário, suas preferências culturais
eram exclusivamente cantores gospel, programas religiosos e a leitura da
Bíblia”.
Ficção e Realidade
Durante o acompanhamento da novela “Cheias de Charme”, foram
diversas as reflexões entre as empregadas domésticas de que a novela era legal
e interessante por retratar o emprego doméstico — sempre tão desvalorizado —,
mas era também uma “fantasia”, era “exagerada”. “A novela as retratava como
mulheres lindas, que ascendem socialmente por meio de um grupo musical, as
‘empreguetes’”, observa a pesquisadora.
“Dialogando com o universo das fábulas, a trama era a
expressão da Gata Borralheira que vira Cinderela, agora encarnada na
trabalhadora da ‘nova classe média’, ou da ‘classe C’, afirma Renata. “Porém,
as mulheres pesquisadas, mais do que ninguém, sabem que na realidade ser
mulher, pobre, empregada doméstica, muitas vezes negra, migrante, moradora de
regiões pobres da cidade, significa enfrentar uma série de estigmas sociais que
as marcam negativamente e que pouco tem a ver com os desfechos dos contos de
fadas”.
De acordo com Renata, as transformações na lei (PEC das
domésticas), nas famílias empregadoras (que passam a respeitar um pouco mais a
profissão) e nas pesquisas de mercado (que passam a levar esses trabalhadores
em conta) contribuíram para reduzir a “desumanização” que tais profissionais
enfrentaram no passado. “Entretanto, a desigualdade social se refaz por novos
caminhos, revelando ainda existir uma série de contradições e estereótipos
tantos nos discursos da mídia sobre empregadas domésticas, como entre as
próprias trabalhadoras”, conclui. A pesquisa é descrita na dissertação de
mestrado “Espelho mágico: empregadas domésticas, consumo e mídias”, orientada
por Heloisa Buarque de Almeida, do Departamento de Antropologia da FFLCH.
Disponível em
http://consumidormoderno.uol.com.br/comportamento/transformac-o-social-altera-consumo-cultural-de-domesticas.
Acesso em 20 nov 2013.