Eduardo Pegurier
06/01/2014
Em 1944, em um campo alemão de prisioneiros de
guerra, ocorreu uma fuga em massa de 76 soldados das forças aliadas, que
conseguiram cavar um túnel para escapar. A busca pelos fugitivos levou semanas,
mas quase todos, com exceção de três, foram recapturados, e 50 terminaram
mortos em um fuzilamento sumário feito pela Gestapo.
A aventura virou livro e, na década de 60, um filme
hollywoodiano de sucesso, com astros da época, como Steve McQueen. Ela também
serviu de inspiração para o novo livro de Angus Deaton, professor de economia
da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.
Famoso na academia, mas pouco conhecido do grande público,
Deaton usou o filme como metáfora de outra história — a porta de saída da
miséria, aberta desde a Revolução Industrial, permitiu que cerca de 80% da
humanidade escapasse da pobreza absoluta.
No mesmo período de 200 anos, a população dos países ricos
atingiu níveis de afluência impensáveis até para reis que viveram antes desse
tempo. A expectativa de vida nessas nações dobrou, e a mortalidade infantil,
que ceifava a vida de cerca de um terço das crianças, caiu para quase zero.
Tal trajetória aos poucos é imitada pelos países em
desenvolvimento. Mas, como em toda boa trama, há nuances e riscos. Um bilhão de
pessoas no mundo ainda são miseráveis e, nos Estados Unidos, país símbolo do
sucesso econômico e da mobilidade social, o progresso das classes média e pobre
estagnou, enquanto os ricos dispararam na concentração de renda.
O fenômeno não é exclusividade americana. Países como China
e Índia, de rápida expansão nas últimas décadas, também se tornaram mais
desiguais.
No livro The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins
of Inequality (algo como “A grande fuga: saúde, riqueza e as origens da
desigualdade”), Deaton faz de maneira acessível ao grande público uma culta
descrição do salto humano, impensável antes do século 19, em direção à
prosperidade e à saúde. E reflete se a porta continua aberta para aqueles que
ainda são pobres ou se a desigualdade está aumentando.
Há dois lados da desigualdade de renda, um bom e outro ruim,
segundo o autor. A parte positiva é que, sem alguma desigualdade, não há
progresso. O crescimento do padrão de vida está ligado a novas tecnologias, e
elas não surgem de forma bem distribuída entre os países ou ao longo do tempo.
Costumam acontecer em uma área definida, como a indústria da
Inglaterra no século 19 ou as startups do mundo digital do Vale do Silício no
fim do século 20. A difusão de novas tecnologias demora, não só pela velocidade
de compartilhamento das novas ideias mas também porque é preciso infraestrutura
e capital humano para utilizá-las.
A teoria do germe, um dos exemplos do livro, surgiu no fim
do século 19 e estabeleceu que microrganismos eram a causa das doenças
infecciosas. Ela gerou uma revolução em saneamento nos países ricos e, em
seguida, no mundo. Entretanto, essas melhorias ainda hoje não alcançam 30% da
população mundial.
Mais lobistas
O lado ruim da desigualdade é concentrar o poder político
com a renda, um fenômeno americano intensificado nos últimos 30 ou 40 anos.
Entre os indícios, a fatia de trabalhadores do setor privado que era
sindicalizada diminuiu de 24%, em 1973, para 6,6%, em 2012.
Na direção oposta, o número de lobistas de grandes empresas
registrados na capital americana, Washington, cresceu de 175, em 1971, para 2
500, em 1982. Por fim, a renda dos 5% mais ricos, em 1966, era 11 vezes maior
do que a dos 20% mais pobres. Em 2010, essa proporção havia subido 21 vezes.
Deaton afirma que o fenômeno tem um lado interessante. Há
100 anos, 90% da renda dos americanos mais ricos derivava de dividendos. Hoje,
75% dela vem de salários. Os ricos contemporâneos trabalham e chegaram lá
porque têm mais educação. “Se o sistema educacional se tornar flexível o
suficiente para produzir novas habilidades tão rapidamente quanto elas se
tornam necessárias, o aumento da desigualdade deverá chegar ao fim”, diz
Deaton.
No contexto brasileiro, sua análise dá calafrios, porque
implica que temos um longo caminho na contramão de uma tendência que parece
mundial. A despeito da melhoria recente na distribuição de renda, o Brasil
conserva os mesmos vícios de origem: renda desigual ao extremo, Justiça cara e
educação pública de baixa qualidade. Nossa fuga, na melhor das hipóteses, ainda
levará tempo.
Disponível em
http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1055/noticias/a-longa-fuga-da-miseria?page=1&utm_campaign=news-diaria.html&utm_medium=e-mail&utm_source=newsletter.
Acesso em 09 fev 2014.