Rodrigo Carneiro
29/03/2012
Sempre foi assim. À margem, a periferia das grandes cidades
concebe seus próprios modos de expressão artística. Diante das adversidades do
dia a dia, cria e os desenvolve. Eles, então, ultrapassam a linha da pobreza e,
digamos, ascendem socialmente; chegando à indústria cultural - que tenta
codificá-los. Amplificada, a voz dos excluídos causa desejo e repulsa em um
novo público, para, no final do processo, ser assimilada, domesticada, na visão
dos mais alarmistas, pelo sistema. No caso da música, isso é de uma clareza
exemplar.
Afinal, o samba, reconhecido pela Unesco como patrimônio
imaterial da humanidade, em 2005, originário do recôncavo baiano, levado à
região da Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro, e, devido à especulação
imobiliária, aos morros da Guanabara, só começou a ser levado a sério nos
grandes salões com a chancela do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos
(1887-1959). No ano de 1940, em parceria com o regente britânico, naturalizado
americano, Leopold Stokowski, Villa-Lobos promoveu um registro fonográfico à
bordo do navio S.S. Uruguai, com as participações de Donga, Pixinguinha,
Cartola, João da Baiana e Zé Espinguela.
Até então, o samba era visto com reservas e alvo constante
de preconceito. Cartola, vale lembrar, lavava carros quando foi reencontrado
pelo jornalista Sérgio Porto em 1956. Compositor de sucessos gravados por
Carmen Miranda, Mário Reis, Francisco Alves e Silvio Caldas durante a década de
1930, o poeta de "As Rosas Não Falam" sumira do cenário e só foi
estrear como intérprete de suas composições em 1974.
Outros gêneros também protagonizaram ciclo de absorção
semelhante no Brasil. O punk rock, o rap e o funk carioca são alguns deles.
"Todas estas expressões surgiram entre as pessoas de baixa renda,
trabalhadoras e moradoras nos bairros mais pobres. São manifestações de
autoestima dentro de uma sociedade tão discriminadora quanto a nossa", diz
João Batista de Jesus Felix, doutor em antropologia social pela USP.
Os primeiros ecos da versão brasileira do punk, que nasceu
nos EUA, em meados dos anos 1970, e explodiu mundialmente com a cena inglesa,
foram ouvidos em afastados bairros paulistanos e em cidades vizinhas de
tradição operária como Osasco e a região do Grande ABC (Santo André, São
Bernardo do Campo e São Caetano do Sul). Vivendo os momentos finais de
horrendas duas décadas de ditadura militar, subdesenvolvimento econômico e uma
inflação de dimensões continentais, o Brasil era punk, aliás, pré-punk.
"Se o punk não tivesse sido inventado no exterior, nós
o inventaríamos aqui", diz Clemente Nascimento, fundador dos Inocentes,
músico da Plebe Rude e curador do festival O Fim do Mundo, Enfim, que acontece
entre hoje e domingo no Sesc Pompeia, em SP. "Já de início as bandas se
preocuparam em fazer som próprio e praticamente ninguém fazia cover. Isso foi fundamental
para que criássemos a nossa identidade".
A movimentação fez barulho. Logo, a estética punk da
garotada suburbana seria incorporada na produção do pós-punk paulistano -
Mercenárias, Voluntários da Pátria, Smack, entre outros -, na sonoridade dos demais
Estados, na faixa "Punk da Periferia", composta e gravada por
Gilberto Gil no disco "Extra", de 1983, e até mesmo em um dos álbuns
mais significativos e bem-sucedidos comercialmente dos Titãs, "Cabeça
Dinossauro", de 1986.
"Não ter medo da rua aguça a criatividade. Nesse
sentido, a periferia está mais do que exposta ao que acontece no mundo",
diz Marco Butcher, fundador, nos anos 1990, do Thee Butchers' Orchestra, e hoje
envolvido em projetos como Jesus & the Groupies, The Uncle Butcher e Thee
Kaipirinas. O músico Kiko Dinucci, de trabalhos como Metá Metá e Passo Torto,
concorda com Butcher. "Desde os primórdios da música popular no Brasil há
a fusão de gêneros estrangeiros, o que se dá de forma aculturada. A arte
periférica sempre existirá e sempre será espontânea, de acordo com as
influências, externas ou não, que as rodeiam", diz Dinucci.
Dividindo espaço com punks na estação São Bento do metrô e
nas Grandes Galerias, na rua 24 de maio, ambas no centro de São Paulo, em
meados dos nos 1980, os primeiros adeptos do hip hop no Brasil também vinham da
periferia - assim como toda aquela cultura originária dos guetos negros e
latinos nova-iorquinos que tem como elementos de formação o DJ, a dança de rua,
o MC e o grafite. Em solo brasileiro, os pioneiros do gênero - gente como
Mister Théo, Thaíde & DJ Hum, Ndee Naldinho e Racionais MCs - foram
iniciados nos chamados bailes black, promovidos por equipes de disc-jóqueis.
Ainda mais associado aos desvalidos, o rap, a manifestação musical do hip hop,
trazia a informação do sample, onde se compõe a partir de uma base já
existente. Além de uma contundente infinidade de temas narrativos.
De seus passos iniciais até os dias de hoje, o hip hop
passou por momentos de obscuridade e holofotes midiáticos. Segundo Jesus Felix,
autor de estudos acadêmicos como "Chic Show e Zimbabwe e a Construção da
Identidade nos Bailes Black Paulistanos" e "Hip Hop: Cultura e
Política no Contexto Paulistano", o período atual é o de visibilidade. E
reafirmação do caráter contestador.
"Recentemente, Emicida participou do 'Conexão
Repórter', do SBT. As cenas externas foram todas gravadas no bairro onde ele
nasceu, o Jardim Novo, no extremo norte de São Paulo. Já o Criolo, no
'Esquenta', da Rede Globo, fez questão de reafirmar sua condição de negro.
Também defendeu os interesses dos oprimidos", diz o antropólogo. "E
tem o Thaíde, que é um dos apresentadores de 'A Liga', na Band. Os espaços
midiáticos estão sendo ocupados. O que eu considero extremamente
positivo."
O funk carioca, que no definitivo refrão de "Som de
Preto", sucesso de Amilcka e Chocolate, "é som de preto, de favelado,
mas quando toca ninguém fica parado", suscita paixões extremadas desde os
anos 1980. Hoje, o pancadão, como também é conhecido, é trilha sonora tanto de
festas ao ar livre - que têm sido reprimidas pela polícia nas comunidades
carentes - quanto das casas noturnas destinadas ao público abastado. Isso em
todo o país. Lulu Santos, Xuxa e Regina Casé já se declaram entusiastas.
Enquanto setores da Secretaria de Segurança carioca dirigia atenções ao
segmento "proibidão" do funk - sim, o elogio à marginalidade também
faz parte do agito. No jogo de amor e ódio, uma lei estadual, de 2009, diz: o
pancadão é movimento cultural do Rio.
Tudo acontece na periferia, atentava uma das músicas do
Ratos de Porão, no álbum "Crucificados pelo Sistema", de 1984. A
máxima punk hardcore crossover do RDP continua valendo em 2012. Afinal, neste
exato momento, algo, do ponto de vista artístico, está sendo desenvolvido
n'alguma localidade negligenciada pelas autoridades. Algo legítimo que será
absorvido em seguida. É o inevitável.
Disponível em
http://www.valor.com.br/cultura/2592460/da-periferia-das-cidades-para-o-grande-publico?utm_source=newsletter_manha&utm_medium=29032012&utm_term=da+periferia+das+cidades+para+o+grande+publico&utm_campaign=informativo&NewsNid=2589792.
Acesso em 02 jun 2013.
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